Nas antípodas da comédia romântica tradicional, esta perturbadora sátira, descrita desde sua capa como unromantic comedy, atua como uma reflexão crítica altamente caústica sobre o narcisismo no capitalismo tardio. Uma espécie de thriller psicológico que traz em seu centro um casal patético, digno de figurar numa sequência do romance Risíveis Amores Kunderiano, “Sick of Myself” (Syk Pyke, Noruega, 2022, traduzido no Brasil como Doente de Mim Mesma) é uma obra cativante.
Esta “captivating exploration of digital culture’s intricate maze” (Daisies Movie) tem também semelhanças estéticas notáveis com o cinema de Yorgos Lanthimos e a Greek Weird Wave (saiba mais em nosso texto sobre Poor Things). Convida a pensar que muitas plataformas poderosas de “mídia social” criadas pelas Big Tech do Vale do Silício, por suas intervenções manipulatórias no sistema dopamínico dos seres humanos, estão se tornando as produtoras de severas patologias psíquico-emocionais que é também ofício dos artistas nos ajudar a desvendar, desconstruir e superar.
A Signe (interpretada por Kristine K. Thorp), protagonista deste filme norueguês dirigido por Kristoffer Borgli (que depois faria Dream Scenario, com Nicholas Cage), a certo ponto do enredo decide entupir-se de propósito com uma droga, parecida com Xanax, depois de ler na internet que esta substância vem provocando graves doenças de pele em seus usuários. Moradora de Oslo (esta metrópole complexa que é a locação também dos filmes de Joachim Trier), onde trabalha num café/padoca, ela recorre a um traficante de remédios tarja-preta e consegue importar da Rússia os comprimidos da pesada destinados a tornar sua pele horrorosa.
É uma premissa repleta de absurdidade, uma fantasia à la Ionesco, onde a moça bonita vai escolher de propósito a feiúra e a doença pois sente que poderá assim adquirir uma certa notoriedade midiática a partir de seu devir-monstro. É o tipo de tragicomédia que evoca também situações bizarras da nossa vida real cada vez mais Black Mirror-esca, em que alguns sujeitos são capazes das ações mais tresloucadas – segurar os testículos de um tigre no zoológico, tentar parar uma bala de revólver com um livro, enfiar a cabeça num microondas… (*) – em busca de repercussão on-line. Também não faltam relatos de episódios sinistros de mass shootings ou atentados terroristas em que o assassino invade uma escola ou um cinema, matando geral enquanto transmite sua carnificina como live em sua rede social de predileção. Neste tipo de insanidade viralizante este filme desenvolve sua angustiante, tragicômica narrativa.
A lourinha Signe é apresentada nas primeiras cenas com uma pele boa, bem-cuidada, digna de ser contratada pra ser modelo de alguma marca de cosméticos: uma pele com um grau de perfeição que mereceria até os aplausos de um nazi eugenista que fosse fã de “pele ariana”. É de fato com uma sensação de galopante absurdo que o público assiste a transformação intencional de Signe em algo repugnante, assustador, monstruoso.
Há algo da estética do body horror aqui, dialogando com o cinema dos Cronenbergs (David e Brandon) e também com as francesas Ducorneau (Titane, Raw) e Fargeat (A Substância). Há algo também da parábola kafkiana, ainda que em A Metamorfose o caráter não-intencional do devir-barata de Gregor Samsa contraste radicalmente com a intencionalidade de Signe em devir-freak. Aqui, é como se a Gregória Samsa escolhesse transformar-se em um gigantesco inseto – tudo pra ver se ela conquista seus 15 dias de fama nos portais de notícias.
O enredo se desenrola parecendo uma ficcionalização de algum relato-de-caso feito por um psicanalista acerca do sado-masoquismo em sua versão “cyber”: Signe é uma jovem mulher loura e bonita que nos será apresentada numa espiral descendente de enfeamento, adoecimento, enlouquecimento, tudo motivado por seu feroz narcisismo e por seu relacionamento perverso com Thomas, outro narcisista patológico (além de cleptomaníaco). Ela deseja os holofotes, não importa a que custo; quer estar na capa das revistas, quer ser entrevistada na TV, quer ser fotografada, quer ser o centro das atenções na mesa de jantar (mesmo que para isto tenha que atuar uma crise alérgica que faça com que todos se ocupem de sua dificuldade de deglutição) etc. E sendo apenas uma loura bonita “normal” tal destino de glória midiática não se fará.
Ela investe, portanto, em sua auto-monstrificação. Ela quer devir-monstro para que o mundo a note, preste atenção em seu martírio, conceda-lhe o prazer de estar sendo o alvo de certos aparatos de visibilização que, para além das redes sociais, envolvem também o mundo da moda e das artes contemporâneas. Sua escolha é pela auto-vitimização ostensiva.
Também há pontiagudas alfinetadas desferidas por este filme sobre um certo establishment burguês-liberal “wokeísta” que se utiliza de modelos deficientes ou amputadas – como na fictícia Regardless do filme – para vender-se como inclusiva, humanitária, anti-capacitista. A ironização que o filme produz me lembra das obras do sueco Ruben Ostlund, cineasta duas vezes premiado com a Palma de Ouro em Cannes, que explorou temática similar em Triângulo da Tristeza e The Square: a Arte da Discórdia.
Signe, junto com seu namorado profundamente narcísico, encarnam de maneira caricatural uma psicopatologia que vem viralizando: trata-se do desejo irrefreável de fama neste mundo de hiperconectividade em que estamos quase todos ficando viciados. Tendo hackeado a neurociência da dopamina (cf. Anna Lembke), o capitalismo contemporâneo, via Meta, Google, Netflix e quê tais, nos enfiou em massa nas garras deste vício: queremos viver situações Instagramáveis, ir a lugares onde possamos tirar selfies sorridentes postáveis no Face, fazer viagens que depois possamos colocar os vídeos no YouTube. Descartes é muito demodê com seu “penso, logo existo”; agora está vigente o “posto, logo existo” (mas só existo mesmo se os outros me derem suficientes likes).
Um filme como “Sick of Myself” revela o dark side desta moeda, explora um tipo de doença psicosomática que emerge daí. O casal no cerne da obra é profundamente doentio e é de se perguntar o quanto da patologia de Signe não provêm de seu convívio com o namorado Thomas, um desses artistas-contemporâneos bem charlatões que vive de vender como arte certos itens de mobília de design “chic” que ele rouba de lojas que tem seguranças desatentos.
A loucura de Signe também tem a ver com o narcisismo ferido de sentir-se não-vista, insuficientemente celebrada pelo namorado: isto é bem literal naquela cena em que ela chega do trabalho toda ensanguentada por ter ajudado uma senhora que foi mordida por um cão e adentrou o café onde Signe trabalha. Com o sangue jorrando aos borbotões, a senhora é atendida com primeiros socorros por uma Signe que suspeitamos não ter realizado tal “proeza ética” por sua empatia, mas muito mais pelo seu desejo de ser vista sendo uma heroína. Ela faz questão de andar pelas ruas, voltando pra casa neste dia extra-ordinário, com a roupa branca toda manchada, como se estivesse ostentando seu feito feito um cirurgião de E.R.. Em casa, o namorado demora horrores para olhá-la e percebê-la naquele estado lamentável de estar encharcada com o sangue alheio. Concordo com a resenha publicada no site do Daisies Movie que aponta este episódio como aquele que “altera para sempre a trajetória da vida dela”:
Este episódio laboral parece ter servido de gatilho para a neurose de Signe: ali, ela foi vista como heroína, pois todos ao redor permaneceram imóveis enquanto só ela agiu para ajudar a pobre senhora mordida. Signe observa ao seu redor os cidadãos sacando seus celulares para registrar e transmitir o “feito”. Nos dias seguintes, ela não se cansará de ostentar para seus conhecidos: “se não fosse por mim, ela teria morrido”.
Há este anseio de heroísmo, desde o princípio, no epicentro desta neurose em desenvolvimento. Só que este heroísmo logo se transmuta numa espécie de vontade-de-martírio, de anseio-de-vitimização. Signe percebeu que a sociedade vem concedendo muito espaço de visibilidade e de expressão visual para as vítimas da sociedade. Ela quer devir-vítima pois acha que isto é um atalho para tornar-se famosa. O método para chegar lá ela vai tateando, chegando mesmo a sondar a possibilidade de irritar um cachorrão, na rua, com certos abusos, para que ela se torne também uma pobre mulher mordida por um cão feroz e que será alvo de uma atenção pública repleta de compaixão.
O jovem diretor Kristoffer Borgli, nascido em 1985, realizou aqui uma obra-de-arte provocativa que merece a consideração de quem se interessa por psicologia social e por psicopatologias do “mundo digital” atual. Um dos principais teóricos contemporâneos do narcisismo viral, Alselm Jappe escreveu em Sociedade Autofágica:
“O narcisismo está tão ligado ao capitalismo pós-moderno, líquido, flexível e ‘individualizado’ – cuja expressão mais completa se encontra na ‘rede’ – como a neurose obsessiva estava ligada ao capitalismo fordista, autoritário, repressivo e piramidal – cuja expressão característica se encontrava na linha de montagem. (…) Para o narcísico, todas as pessoas têm o mesmo préstimo e são intercambiáveis: com efeito, elas não são apreendidas como seres autônomos, cada qual com sua própria história, e que deveriam ser respeitadas para instauras relações mutuamente enriquecedoras, mas sim como figurantes que devem interpretar um papel no cenário interior do narcísico… O narcísico pode entrar numa crise de raiva e despedaçar uma máquina que não funciona ou uma gaveta que não abre; age exatamente como faz, ou gostaria de fazer, com os humanos que se furtam ao seu poder e goram suas expectativas, quer seja o parceiro amoroso ou um inferior hierárquico no trabalho (é sabido que são nos diversos níveis da gestão de empresas que se encontram perversos narcísicos por excelência; sondagens empíricas chegaram de fato a demonstrar que, entre os dirigentes de empresas, a porcentagem de narcísicos é muito elevada. Segundo parece, ser um perverso narcísico ajuda muito a fazer carreira.” (JAPPE: p. 156, saiba mais em https://acasadevidro.com/sociedade-autofagica/).
O filme debate este vínculo entre narcisismo e ascensão social (fazer carreira, ganhar fama), expondo que hoje em dia é cada vez mais claro o vínculo entre a auto-exposição narcísica e a cyber-fama nos palcos das telinhas em regime de TikTokzação. Signe parece encarnar, a meus olhos, uma espécie de auto-fagia, de devoração-de-si, que conduz ao horror corporal de pesadelo, frustrando os planos iniciais dela de tornar-se a vítima famosa. Interpreto o final da peça fílmica como um quase-happy end, mas que deve ter seu sentido destravado com a chave da ironia: parece que Signe encontra, com seu grupo de terapia dita “holística”, uma comunidade de freaks, enfim reconectada com algum tipo de comunitarismo. Mas quando diz “eu amo viver”, entre lágrimas, é difícil não enxergar nisto um wishful thinking que pouca consonância tem com seu afeto real.
A ironia cáustica aqui presente assemelha-se àquela que Lanthimos despejou sobre a “vida comunitária” retratatada em The Lobster (O Lagosta). Neste filme distópico-satírico, o cineasta grego aborda o amor de maneira assemelhada a “Sick of Myself”, ou seja, uma concepção perversa do vínculo amoroso como união dos handicapped, aliança dos neuróticos. Signe e seu namorado servem na obra para a descrição de um casal-de-narcisos, a neurose de um alimentando a do outro, numa espiral infernal. Quando ela adoece de propósito, é tanto para forçá-lo à atenção piedosa pela adoentada quanto para roubar dele os holofotes que ele tão insistentemente procura.
O filme também possui notáveis inserções de conteúdos oníricos e imaginativos que tornam ainda mais interessante este retrato psicológico da protagonista. Acessamos tanto os pesadelos de Signe quanto suas fantasias “positivas”, seu ideal-do-ego. São bem interessantes certas cenas em que a matéria da vida real, os conteúdos do ego acordado, mesclam-se com estes conteúdos inconscientes ou semi-conscientes, e onde Eros e Tânatos dançam uma mórbida valsa.
Há aquela cena-de-sexo em que a Signe, vestindo a máscara que recobre suas pústulas e feridas, pede ao namorado que descreva como ele imaginou o funeral da moça. Emerge aqui a fantasia de um funeral lotado, repleto de gente, que rivalize com aqueles de pessoas ilustres (Paris diante do cadáver de Victor Hugo, por exemplo).
Há aquela outra cena em que ela imagina a revelação da verdade para a mídia – “tomei de propósito doses muito altas do medicamento Lexicol sabendo que me faria mal” – e fantasia que isto geraria tanto interesse na jornalista que esta sugeriria a escrita de um livro de memórias destinado a virar um best-seller. No âmbito fantasioso onde ela se perde, o tal livro memorialístico brota “do nada”, com suas 300 e poucas páginas, e o namoradinho fica extasiado com o relato. Mas a realidade é tremendamente frustrante, ainda mais quando o contraste se faz entre os aplausos sonhados e o poço profundo da realidade vivida. O abismo entre o imaginário e o real se revela quando a jornalista, ao ouvir de fato a revelação da tramóia de Signe, enoja-se diante da “maluquice” dela e quer sair correndo da presença da doida-varrida. Sem dar trela na mídia pra esta neurodivergência que causa cada vez mais fobia normopática a seu redor.
Tudo neste filme conduz a uma reflexão sobre este ego-centrismo doentio e adoecedor que nomeamos apelando para o mito grego de Narciso. Aqui, o narcisismo está atualizado para condições nórdicas, pós-modernas, de capitalismo de plataformas. O filme também mostra este narcisismo incrustado também num certo milieu que é o das Artes Contemporâneas, âmbito aberto a todo tipo de charlatanismo e golpismo promovido pelos esfomeados por notoriedade, mesmo que de nicho.
Os aparatos sociais que concedem fama, notoriedade, visibilidade, muito engajamento nas redes sociais, são aqui descritos como usinas de subjetividades autofágicas. Aqui, a Narcisa devora a si mesma, e este processo é tão mais perturbador pois quase todos nós sentimos que, apesar de tais tendências aparecerem em Signe de maneira extremada, e serem descritas de maneira caricatural, quase nenhum de nós está hoje imune a formas atenuadas deste mesmo narcisismo auto-fágico, adoecedor e perverso, semeador de discórdias e promotor de feroz competição pelos holofotes da cybervisibilidade.
O esforço constante para estar em evidência nas redes tem gerado o que apelidei de Síndrome da Postação: um dia sem post é um dia perdido. Além do mais, quase sempre o post gera uma mistura ambivalente de satisfação pelas curtidas, comentários e interações geradas pelo mesmo (cada uma delas disparando no cérebro um pequeno disparo dopamínico) com frustração angustiante diante do que o sujeito quase sempre interpreta como insuficiência de ressonância. É preciso postar de novo para ver se, desta vez, o sucesso é maior, a ressonância mais ampla, a dose de dopamina mais acachapante.
Ficamos assim presos num ciclo vicioso onde somos todos narcisos numa neo-Hobessiana guerra de todos contra todos em que vamos disputando migalhas de atenção e repercussão, mergulhados nestes sumidouros de tempo e sanidade que são as redes sociais. Quem ri por último são os bilionários do Vale do Silício. E quem se desespera é quem se preocupa com a saúde mental, com o bem-viver em sua dimensão psíquica-emocional, já que tudo conspira, neste nosso estado do capitalismo neoliberal que tarda em morrer, para nos adoecer em massa e transformar o narcisismo normalizado em banalidade.
Considero Sick of Myself uma bem-vinda obra-de-arte que nos provoca a criticar em profundidade os transtornos cyber-narcísicos a partir da estória tragicômica de Signe, ela que estava “doente de si mesma” bem antes de sua espiral descendente se manifestar em todos os poros de seu corpo auto-fágico, delirante, que se lançou loucamente ao anseio de fama ainda que ao preço de sua auto-monstrificação. Este filme assustador ressoa seu alerta. Os cyber-labirintos explorados com tanto brilhantismo no livro de Paula Sibilia acerca do Show do Eu conduzem com frequência crescente a pesadelos distópicos como este exposto em Doente De Mim Mesma.
Eduardo Carli de Moraes
16/03/2025
Texto disponível tb no Letterboxd e no Substack
Filme assistido através de torrent baixado no Making Off
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Publicado em: 17/03/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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